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Como funciona o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero, criado pelo Conselho Nacional de Justiça?

  • Foto do escritor: Elas Pedem Vista
    Elas Pedem Vista
  • 24 de abr. de 2024
  • 8 min de leitura




Ivana PatrĂ­cia de Paula

Paula Ferro Costa de Sousa

Julia de Baére Cavalcanti d'Albuquerque

 

Apesar de a Constituição da RepĂșblica consagrar o princĂ­pio da igualdade, Ă© sabido que as diferenças sĂŁo inerentes ao convĂ­vio social e Ă s relaçÔes humanas. Contudo, Ă© imperativo que tais disparidades nĂŁo se transformem em desigualdades, especialmente aquelas relacionadas ao gĂȘnero. Nesse contexto, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero, estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça, surge como uma ferramenta essencial para assegurar um sistema de justiça mais equitativo e sensĂ­vel.

 

HistĂłrico

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero, concebido no Brasil em 2021, tem como inspiração a iniciativa da Suprema Corte do MĂ©xico [1] na promoção da equidade de gĂȘnero e na salvaguarda dos direitos das mulheres preconizados pelos Objetivos de Desenvolvimento SustentĂĄvel (ODS) 5 e 16, da Agenda 2030 da ONU.

Ao replicar esse modelo no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [2], nĂŁo sĂł visa contribuir para a implementação das polĂ­ticas de combate Ă  violĂȘncia contra as mulheres, mas tambĂ©m impulsionar a participação feminina no JudiciĂĄrio. Inicialmente aprovado pela Recomendação CNJ nÂș 128/2022 [3], tal ato começou a abrir os caminhos junto aos Tribunais para utilização dessa ferramenta.

ApĂłs um ano de vigĂȘncia da Recomendação, foi aprovada a Resolução CNJ n.Âș 492/2023 [4], que marcou o inĂ­cio da obrigatoriedade da aplicação do Protocolo em todas as instĂąncias do Poder JudiciĂĄrio. AlĂ©m disso, estabeleceu diretrizes especĂ­ficas para julgamentos envolvendo questĂ”es de gĂȘnero, frequentemente ligadas Ă  violĂȘncia contra mulheres, em todas as suas concepçÔes. A pesquisadora Denise Abade define a Resolução como “a primeira determinação de ordem institucional vinculante no Brasil sobre como julgar os casos a partir da constatação de que o gĂȘnero tem impacto diferenciado sobre as pessoas envolvidas” [5].

Dentre as medidas adotadas, destacam-se a apresentação de conceitos teĂłricos fundamentais sobre igualdade e a implementação de uma metodologia prĂĄtica, acompanhada de exemplos claros, destinada a orientar os juĂ­zes a fim de evitar a reprodução de estereĂłtipos e a perpetuação de tratamentos discriminatĂłrios. Adicionalmente, exige-se a capacitação contĂ­nua dos magistrados em temas cruciais como direitos humanos, igualdade de gĂȘnero, e diversidade racial e Ă©tnica.

A relevĂąncia histĂłrica desse normativo se evidencia com sua imediata aplicação pelo prĂłprio CNJ logo apĂłs aprovada a Resolução. No caso, foram utilizadas as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero em processo disciplinar que apurava a conduta de magistrado acusado de assĂ©dio e importunação sexual. O Conselho, em decisĂŁo unĂąnime, entendeu configurada a infração, o que resultou na aplicação da penalidade de aposentadoria compulsĂłria a um juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 2ÂȘ RegiĂŁo (TRT-2) por assĂ©dio e importunação sexual [6]. Esse episĂłdio destaca o potencial transformador do Protocolo para enfrentar desigualdades de gĂȘnero arraigadas na sociedade.

 

O que Ă© o Protocolo?

Considerado uma ferramenta crucial na batalha contra a discriminação e a violĂȘncia de gĂȘnero, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero representa um instrumento essencial para todos os Tribunais brasileiros. Destina-se a ser aplicado em todos os casos nos quais seja necessĂĄria uma anĂĄlise mais detalhada das desvantagens enfrentadas pelas mulheres na sociedade, refletindo-se consequentemente no contexto processual. Seu alcance vai alĂ©m dos processos criminais, abrangendo diversas esferas jurĂ­dicas.

Como dito, o documento identifica diversas situaçÔes que refletem desigualdades nos processos judiciais e administrativos, como a desconfiança em relação ao relato da vĂ­tima de violĂȘncia sexual, a negativa de adoção por casais homossexuais, a inversĂŁo da guarda com base em alegaçÔes infundadas de alienação parental, e a menor consideração do testemunho de crianças e adolescentes em casos de violĂȘncia sexual, entre outras.

Assim, deve-se utilizar o Protocolo em todas as etapas do processo, com destaque para momentos mais relevantes como audiĂȘncias, produção de provas periciais, instrução do processo e sentença. Essa abordagem visa assegurar que as vozes das mulheres sejam ouvidas e suas experiĂȘncias devidamente consideradas, prevenindo assim preconceitos e discriminação com base no gĂȘnero e outras caracterĂ­sticas.

Vale ressaltar que o Protocolo não se restringe ao julgamento dos processos, mas começa a ser aplicado desde o atendimento inicial, na fase pré-processual. Em outras palavras, sua utilidade se estende além do mero ato de julgar, sendo potencialmente um instrumento para toda a estrutura do sistema de justiça.

 

Como funciona na prĂĄtica?

Na prĂĄtica, o Protocolo se configura como uma metodologia estruturada, fornecendo orientaçÔes detalhadas para os julgadores sobre os procedimentos a serem adotados em situaçÔes que requerem sua aplicação. Embora nĂŁo haja uma fĂłrmula pronta e universal, o documento oferece diretrizes que auxiliam os magistrados no processo de tomada de decisĂŁo, promovendo uma abordagem mais sensĂ­vel e equitativa diante de questĂ”es relacionadas ao gĂȘnero e outras formas de discriminação.

Cada etapa do Protocolo oferece questĂ”es-guia, que ampliam a avaliação das situaçÔes postas, incentivando uma abordagem mais holĂ­stica e inclusiva. Identificar os cenĂĄrios que requerem a aplicação do Protocolo exige uma percepção sensĂ­vel e uma compreensĂŁo aprofundada das dinĂąmicas sociais e culturais que moldam as relaçÔes de gĂȘnero.

É por essa razĂŁo que a Resolução CNJ nÂș 492/2023 estabelece a capacitação obrigatĂłria dos magistrados. Essa medida visa dotĂĄ-los das habilidades e conhecimentos necessĂĄrios para reconhecer e lidar adequadamente com questĂ”es de gĂȘnero e discriminação, fortalecendo assim a eficĂĄcia e a justiça do sistema judiciĂĄrio.

Os julgamentos realizados com foco na perspectiva de gĂȘnero resguardam os direitos das mulheres em posição de desvantagem processual, por se apresentarem como um “caminho para propiciar um giro na condução do processo, atuação dos sujeitos processuais, anĂĄlise de fatos e provas e o julgamento orientado por conhecimentos mais consentĂąneos Ă s questĂ”es postas” [7].

A adoção do Protocolo de GĂȘnero do CNJ possibilita, por exemplo, que a declaração da vĂ­tima tenha importante valor probatĂłrio, evitando uma possĂ­vel revitimização da mulher, que alĂ©m de sofrer a violĂȘncia da qual Ă© vĂ­tima, tambĂ©m sofre, muitas vezes, com a violĂȘncia institucional.

AlĂ©m disso, evita que o processo se distancie do objeto da lide e abarque a conduta da mulher, com vistas a constrangĂȘ-la, servindo, portanto, de instrumento para ampliar sua punição por meio de uma espĂ©cie de “violĂȘncia psicolĂłgica institucionalizada, pelo fato de nĂŁo ter seguido Ă  risca o papel que Ă© esperado dela em uma sociedade androcĂȘntrica” [7].

Diante disso, os magistrados deverĂŁo manter postura compatĂ­vel com a envergadura do Protocolo e determinar que eventuais petiçÔes ou documentos que diminuam ou questionem a conduta da mulher sejam extraĂ­dos dos autos, alĂ©m de oficiar Ă  OAB acerca da violação Ă  Ă©tica da profissĂŁo. Durante as audiĂȘncias deve ser adotada a mesma atitude, impedindo a elaboração de perguntas vexatĂłrias que tenham como escopo influenciar o julgamento atravĂ©s de insinuaçÔes quanto Ă  conduta moral da mulher.

Como demonstrado, o documento publicado pelo CNJ permite a utilização da perspectiva feminista no julgamento de processos “para que a decisĂŁo nĂŁo fique alheia Ă  realidade vivenciada pelos sujeitos vulnerabilizados em razĂŁo do sexo, gĂȘnero e sexualidade” [7].

 

A aplicação do Protocolo de GĂȘnero do CNJ sempre beneficia as mulheres?"

É importante destacar que a aplicação do Protocolo de GĂȘnero do CNJ nĂŁo garante automaticamente decisĂ”es favorĂĄveis Ă s mulheres em todos os casos.

Embora o Protocolo incentive uma abordagem sensĂ­vel Ă s questĂ”es de gĂȘnero, seu propĂłsito principal Ă© promover uma atuação jurisdicional mais respeitosa e equilibrada. Isso significa considerar cuidadosamente as nuances e complexidades das questĂ”es de gĂȘnero ao tomar decisĂ”es, sem necessariamente resultar em vantagens automĂĄticas para qualquer parte. Em vez disso, visa-se garantir que as decisĂ”es judiciais sejam justas e equitativas para todas as partes envolvidas.

 

Avaliação do Impacto do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero do CNJ no Sistema JudiciĂĄrio Brasileiro

A implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem reverberado significativamente no sistema judiciĂĄrio brasileiro, impactando uma variedade de casos em diferentes instĂąncias e ĂĄreas jurĂ­dicas. Em meio a essa mudança paradigmĂĄtica, Ă© vital examinar empiricamente o efeito desse Protocolo, destacando casos emblemĂĄticos que evidenciam sua influĂȘncia na busca pela igualdade de gĂȘnero e justiça social.

Um exemplo significativo Ă© o julgamento da Apelação CĂ­vel 1002714-33.2017.8.26.0417, pela 7ÂȘ CĂąmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de SĂŁo Paulo, onde a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero foi fundamental. A Desembargadora Lia Porto, relatora do caso, enfatizou a necessidade de reconhecer o trabalho invisĂ­vel das mulheres durante relacionamentos conjugais, destacando sua contribuição mesmo apĂłs o tĂ©rmino da uniĂŁo. Esse caso exemplifica como o protocolo estĂĄ sendo utilizado para garantir a equidade na partilha de bens adquiridos durante a convivĂȘncia, reconhecendo os esforços femininos muitas vezes subestimados.

Outro exemplo Ă© uma decisĂŁo recente da Justiça do Trabalho do TRT da 3ÂȘ RegiĂŁo – MG, que afastou um pedido de vĂ­nculo de emprego feito por um homem contra sua ex-companheira. Neste caso, a aplicação do protocolo foi essencial para discernir a dinĂąmica de gĂȘnero subjacente Ă  situação, destacando a importĂąncia de evitar abusos que explorem assimetrias de gĂȘnero.

Um terceiro caso emblemĂĄtico foi julgado pelo TRT da 19ÂȘ RegiĂŁo, onde uma trabalhadora era constrangida a utilizar roupas sensuais no ambiente de trabalho, enquanto seus colegas masculinos nĂŁo enfrentavam essa exigĂȘncia. A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero permitiu uma anĂĄlise crĂ­tica dessa prĂĄtica discriminatĂłria, evidenciando como estereĂłtipos de gĂȘnero perpetuam desigualdades. Esses exemplos destacam como a adoção do protocolo estĂĄ promovendo uma mudança significativa no sistema judiciĂĄrio brasileiro, desafiando normas sociais que sustentam a desigualdade de gĂȘnero.

Esses casos ilustram como a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero estĂĄ promovendo uma mudança significativa no sistema judiciĂĄrio brasileiro. Ao integrar essa perspectiva nos processos judiciais e administrativos, busca-se nĂŁo apenas garantir a igualdade de direitos, mas tambĂ©m desafiar e transformar normas sociais que sustentam a desigualdade de gĂȘnero. Essa anĂĄlise baseada em dados empĂ­ricos revela a eficĂĄcia do protocolo na promoção da justiça e equidade de gĂȘnero no Brasil.

 

Banco de Sentenças do CNJ

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou um Banco de Sentenças [8] para reunir decisĂ”es de todos os tribunais do JudiciĂĄrio que aplicam o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero. Esse repositĂłrio, alimentado pelos prĂłprios tribunais, facilitarĂĄ o acesso a documentos relacionados aos julgamentos.

Por meio dessa iniciativa, os tribunais serĂŁo incentivados a compartilhar suas experiĂȘncias e boas prĂĄticas na aplicação do Protocolo, enriquecendo o debate e promovendo uma maior consistĂȘncia nas decisĂ”es judiciais relacionadas ao tema.

O Banco de Sentenças servirĂĄ como uma fonte valiosa de informação e aprendizado para magistrados, advogados, pesquisadores e outros profissionais do direito interessados em questĂ”es de gĂȘnero.

 

ConclusĂŁo

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero representa um marco significativo na introdução da discussĂŁo de gĂȘnero nas instituiçÔes judiciais, especialmente no Poder JudiciĂĄrio. Este documento nĂŁo se limita a um efeito meramente simbĂłlico, mas sim estabelece uma regulamentação institucional que busca efetivamente promover mudanças no pensamento e na prĂĄtica jurĂ­dica.

A adoção do Protocolo pode ser uma parte essencial de uma resposta institucional. No entanto, sua eficĂĄcia depende diretamente de um esforço pedagĂłgico por parte do Poder JudiciĂĄrio, que inclui jornadas de formação para seu corpo jurĂ­dico, coleta de dados estatĂ­sticos e qualitativos das partes envolvidas, servidores e magistrados. AlĂ©m disso, requer ciclos contĂ­nuos de feedback e revisĂŁo, como Ă© comum em qualquer polĂ­tica pĂșblica.

À medida que olhamos para o futuro, Ă© evidente que o Protocolo tem o potencial de catalisar mudanças profundas na mentalidade jurĂ­dica do paĂ­s. No entanto, seu impacto verdadeiro sĂł serĂĄ plenamente alcançado quando for amplamente adotado e aplicado em todos os nĂ­veis do sistema judiciĂĄrio, contribuindo para a construção de uma cultura jurĂ­dica mais inclusiva e igualitĂĄria.

Portanto, a implementação efetiva do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero nĂŁo apenas fortalecerĂĄ a proteção dos direitos das mulheres, mas tambĂ©m representarĂĄ um passo significativo em direção a uma sociedade mais justa e equitativa para todos os cidadĂŁos.

 

Bibliografia

1 - MÉXICO. Suprema Corte de Justicia de la NaciĂłn. Protocolo para Juzgar con Perspectiva de GĂ©nero: haciendo realidad el derecho a la igualdad. Distrito Federal, 2013. Disponible en: http://archivos.diputados.gob.mx/Comisiones_LXII/Igualdad_Genero/PROTOCOLO.pdf.  Acesso em: 10 mar 2024.

2 - BRASIL. Portaria nÂș 27. Institui Grupo de Trabalho para colaborar com a implementação das PolĂ­ticas Nacionais estabelecidas pelas ResoluçÔes CNJ nÂș 254/2020 e nÂș 255/2020, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento Ă  ViolĂȘncia contra as Mulheres pelo Poder JudiciĂĄrio e ao Incentivo Ă  Participação Feminina no Poder JudiciĂĄrio. Atos CNJ: 2021. DisponĂ­vel em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3714 Acesso em: 11 mar 2024.

3- BRASIL. Recomendação nÂș 128. Recomenda a adoção do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero” no Ăąmbito do Poder JudiciĂĄrio brasileiro. CNJ: 2022. DisponĂ­vel em: https://atos.cnj.jus.br/files/original18063720220217620e8ead8fae2.pdf Acesso em: 10 abr. 2023.

4 - BRASIL. Protocolo para julgamento com perspectiva de gĂȘnero [recurso eletrĂŽnico] / Conselho Nacional de Justiça. —BrasĂ­lia: Conselho Nacional de Justiça –CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados—Enfam, 2021. DisponĂ­vel em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf Acesso em: 9  abr. 2023.

6 - Processo Administrativo Disciplinar (PAD) 0006667-60.2022.2.00.0000. Julgado na 8ÂȘ SessĂŁo OrdinĂĄria do CNJ (23/5/2023). DisponĂ­vel em: https://www.cnj.jus.br/juiz-do-trabalho-e-aposentado-pelo-cnj-por-assedio-e-importunacao-sexual/ . Acesso em: 12 abr 2024.

8 - Banco de Sentenças de DecisĂ”es com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de GĂȘnero-CNJ. DisponĂ­vel em https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/  Acesso em: 9 abri 2023.

 

 

 

 

 

 
 
 
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